“Eu sabia!
Sabia que o passado ia voltar para me atormentar e, embora à noite, desejasse que ele desaparecesse enquanto dormia, no dia seguinte, ele continuava lá.
Eu podia tentar negá-lo. Podia tentar esconder tudo o que se passara mas, no fundo… No fundo eu já sabia que isso era impossível!
O passado tornara-se uma fotografia demasiado dolorosa com encantamentos que a protegiam de ser esquecida ou destruída e eu sabia disso. E por esse mesmo motivo, sabia que odiava tudo o que me relembrava o passado.”.
Ele olhou-a intensamente e esperou que ela dissesse algo. Algum comentário sobre aquele seu curto monólogo. Mas esse comentário não veio. Por isso, o rapaz continuou e esperou. Olhou para o chão verde e para a sombra proporcionada pela árvore onde estavam ambos encostados e de seguida abriu a boca para falar ao mesmo tempo que a observou enquanto ela brincava com a pulseira nervosamente. A turma sentada em roda continuava a olhá-lo e a professora de teatro imitava-os com interesse.
“O passado nunca poderia ser esquecido. E eu sabia disso. Sabia que tinha sido esse mesmo passado que me tinha tornado no que eu era. Sabia que todas as memórias, tanto dolorosas como pacíficas, continuariam lá. E tinha a noção de que não havia nada que me salvasse das memórias que eu tanto detestava.”.
Parou e voltou a olhar a rapariga ao seu lado. Ele nem se dava conta que todo o monólogo estava dirigido a si. O significado por detrás de todas as suas palavras suaves e calmas. “E no entanto, eu sabia que todos os erros que cometi e que faziam parte do passado, iriam voltar para me controlar e não havia que eu pudesse fazer acerca disso a não ser tentar desviar-me deles. Mesmo sabendo que para o conseguir, teria de abdicar de tudo o resto na minha vida.”.
O rapaz suspirou ao ver que a rapariga ao seu lado continuava a brincar com a sua pulseira. Olhou-a tristemente e esperou que mesmo não o olhando, ela estivesse a ouvir atentamente e estivesse a usar toda a sua inteligência, que parecia saída da própria Atena. Baixou a cabeça e voltou a respirar. Quando olhou para cima, cruzou o olhar com a professora de teatro que o tinha feito começar um monólogo com o tema “Eu sabia que…” e perguntou-se se ela seria uma daquelas professoras que sabiam de tudo o que se passava na vida dos alunos. Voltou a olhar para o céu e para tudo o que o rodeava, reparando em praticamente todos os movimentos da equipa de futebol americano que treinava no campo ao lado.
“E mesmo sabendo que a única maneira de não voltar a cometer os erros seria abdicar de tudo, não consegui. Porque abdicar de tudo seria a minha morte. Ficar sem a única coisa que me mantinha são de mente…seria de mais. E aí sim. Aí eu saberia que abdicar de tudo teria sido um erro ainda maior que todos os outros. Seria egoísta da minha parte não abdicar mas, eu sabia que nunca conseguiria fazê-lo. Por isso, eu sabia que mesmo tentando, não conseguiria.”.
Deu o monólogo terminado por ali e esperou pela voz da professora. Já nem valia a pena olhar para a rapariga ao seu lado. Ele não quisera abdicar dela e ela tinha acabado por apanhar de ricochete todos os erros do passado de que ele fugia.
Focou de novo a sua atenção na professora e voltou a esperar. Ela apenas sorriu, acenou com a cabeça, dando-lhe a entender que o que tinha dito, tinha significado algo e não apenas o embaraço que sentia no interior por a rapariga ao seu lado não ter percebido, ou até ter mas fingir que não tinha. Ouviu a voz da professora dizer que estava dispensado, mas tudo lhe parecia demasiado longe. Voltou a ouvir a voz da professora, desta vez dirigida a um dos seus colegas. Ouviu esse mesmo colega começar a falar sozinho, pelo que interpretou que lhe tinha sido a mesma ordem que lhe tinha sido dada a ele. Levantou-se e olhou uma última vez de relance para a rapariga ao seu lado. Surpreendeu-se ao ver que ela o tinha estado a observar. Tentou sorrir-lhe mas não foi bem sucedido. No final, podia jurar que só tinha feito uma careta. Pegou na mochila já vazia depois de ter deixado as coisas no dormitório e afastou-se do resto da turma. Ao entrar dentro do seu pavilhão e ao ouvir os amigos a rirem-se, esperou com todo a sua alma, ser contagiado. Mas nada aconteceu. Continuava a sentir a sua mente a ser assaltada pelos seus erros do passado.
Dirigiu-se ao quarto que partilhava com o seu melhor amigo e sentiu-se aliviado por ver que estava vazio. A verdade era que ele sempre soubera que os erros do passado viriam atormentá-lo. Ora, sempre estivera à espera que eles viessem. Só não esperara que fosse naquele momento. Naquele momento, quando tudo parecia estar a encaixar-se. Naquele momento, quando ele parecia ter encontrado finalmente as peças do puzzle que faltavam.
Sentou-se na cama e olhou para o tecto. Até as personagens dentro dos posters do seu amigo, pareciam olhá-lo e rir-se dele.
Sim…ele sabia que jamais poderia esconder todos os erros do seu passado mas, também sabia que podia pelo menos tentar corrigi-los. Agora, o “como” era o problema.
Deixou-se cair em cima da cama e esperou por alguma reacção por parte do seu corpo. Infelizmente este já parecia vazio. Esperou, esperou e esperou. Ao fartar-se de esperar, levantou-se e olhou para o relógio de pulso. As suas aulas já tinham acabado, não se teria de preocupar se demorava ou não demorava demasiado tempo. Até ao recolher obrigatório, poderia tentar aventurar-se pelos seus pensamentos sem ninguém o aborrecer.
Pegou num caderno de capa preta e no estojo que estavam em cima da sua secretária e de seguida despejou todo o conteúdo da sua mochila, para cima da cama. Apressou-se a fazer um pequeno monte com toda aquela “tralha”, como gostava de dizer, e guardou o tal caderno e o estojo na já um pouco velha mochila. Saiu do quarto e percorreu o campus até chegar ao local que procurava. Sorriu tristemente para o chão e depois deixou-se cair na relva e ficou a olhar para o céu. Riu-se sem muita vontade ao aperceber-se que algumas das nuvens formavam um estranho coelho. Sentou-se e sentiu o vento passar-lhe pelo rosto. Pegou na mala e tirou de lá de dentro os seus pertences. Abriu o caderno na última página que tinha sido usada e coçou a cabeça levemente. Sabia que nunca ia poder acabar aquele desenho. Sabia que mesmo tendo decorado todas as linhas do rosto da rapariga do desenho, não se sentiria bem ao acabar o desenho.
Socou o chão sem muita força enquanto pensava “Eu sabia que o passado ia voltar. Podia ter pelo menos tentado evitar isto…Ah, raios…Eu sabia que não ia acabar aquele desenho…”.
Virou a página do caderno e pegou numa lapiseira que estava dentro do estojo e começou a desenhar a paisagem que o rodeava. Ele sabia que aquele era o único sítio que o aceitava realmente. Aquele pequeno monte, um dos pontos mais afastados do campus, era como a sua fortaleza e só ele sabia disso. O pequeno ribeiro mais abaixo era uma das únicas coisas que o deixava pensar e ele estava realmente agradecido por isso. Terminou o seu desenho uma hora depois. Tinha desenhado todos os traços e todos os pequenos detalhes do que o rodeava. Sabia que o seu professor de desenho ficaria contente.
Não lhe apetecia voltar para o dormitório, por isso deixou-se ficar. Passado pouco tempo, teve a ideia louca de ir nadar. Ele sabia que era uma ideia louca, sabia disso. Mas já estava farto de tanto saber. Afinal de contas, o “saber que” não lhe tinha valido para nada relativamente ao seu passado. E ele sabia que detestava aqueles pequenos “sabia que” por isso mesmo.
No final, a irracionalidade levou a melhor. Se tivesse sido a parte racional a ganhar, ele teria sabido e percebido que não era propriamente a melhor hora para nadar. Teria percebido que ia ficar doente mas, no fundo, até a parte irracional o sabia. Simplesmente já não importava. Por isso, tirou o casaco e a t-shirt e desceu o monte cuidadosamente até ao ribeiro. Tirou os ténis pretos e as meias e entrou na água gelada. Sentiu os arrepios percorrerem-lhe a espinha e depois mergulhou. Deixou-se lá ficar um bocado até espirrar e saiu. Pegou nos ténis e meias e subiu o monte. Pegou na t-shirt e preparou-se para se limpar com ela. Voltaria para o campus de casaco. Mas minutos depois sentiu os músculos contraírem ao ouvir os passos de alguém que se aproximava.
Viu a rapariga de quem ele não quisera abdicar e manteve-se quieto. Depois, simplesmente lhe disse:
“Eu sabia. Sabia que só te ia magoar mas, no entanto, não quis saber. Queria-te só para mim. Não importava o risco. Eu sabia que estava a ser egoísta, mas não quis saber. Sabia que o passado ia caçar-me e tu serias um dano colateral. Sabia e não quis saber. Queria ter-te. Mas eu sabia”.
Ela mudou o peso do corpo para o outro pé e olhou-o sem nada dizer. De seguida, foi-se embora e deixou-o sozinho. “Ah, raios. Eu também sabia que não devia ter dito aquilo…”. Murmurou entre dentes. Sentou-se junto à mochila e guardou o caderno e o estojo. Suspirou e voltou a olhar para a paisagem ao seu redor.
“Odeio os teus “eu sabia que”. A sério que sim. Já pensaste em deixares de saber? Se calhar tornava-se mais fácil, não?”. A rapariga deixou cair uma toalha em cima da cabeça dele e cruzou os braços enquanto ele a olhava interrogativamente. “Tu pensas que sabes. E o mais provável é que saibas mesmo. Mas e que tal em vez de “eu sabia”, pensares antes “estás a falar do quê? Não faço a mínima ideia do que isso seja.”? Não te precisas de te tornar um ignorante. Basta deixares esses teus “eu sabia que” para o lado durante pelo menos um minuto. Vais ver que não é assim tão difícil.”. Ele olhou para o chão ainda com a toalha na cabeça e começou a tentar raciocinar. “Pára com isso. Não penses!”. Sentiu a toalha desaparecer da sua cabeça e apercebeu-se que a rapariga tinha pegado nela só para de seguida a pousar no corpo dele.
Ele sorriu-lhe e ela retribuiu fracamente. Sentou-se ao seu lado e encostou a cabeça no ombro dele. “Eu pensava que sabia.” O rapaz falou-lhe calmamente. “Mas parece que não. Não sabia que podias ter uma cabeça tão pesada.”
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